Só nevoeiro...
É uma benção ser taralhoca, uma verdadeira dádiva ter a memória de um mosquito amnésico que apenas recorda vagamente o que aconteceu nos cinco minutos imediatamente anteriores, sempre e quando esses minutos tenham envolvido géneros alimentícios de fazer arrepiar um nutricionista mais sensível.
Querida memória de curta duração, quem se não tu para apagares os vestígios das figuras ridículas em que constantemente tropeço.
Eu posso calçar o saltinho, vestir o casaquinho cintado e parecer muito selecta, mas mais cedo que tarde o meu verdadeiro eu barraqueiro emerge e vai reputação, vergonha e até integridade física desta para pior.
Ainda ontem (sim, curiosamente ainda não me esqueci) estava quase a passar por criatura civilizada, quando um gesto brusco arruinou o esforço de largos minutos de conversa de ocasião.
Gesto brusco da esteticista, a inconsciente, que me levantou a perna sem pré-aviso depois dela ter estado sossegadita naquela posição até "fossilizar". Foi tal a guinada que ía caindo da chaise longue para fora e quase me esquecia dos choques que tinham precedido o sucesso.
Choques, um laser dá choques! Uma depilação definitiva é "chocante"!!! E a mim deu-me um ataque de riso. 50 disparos dá muita gargalhada. Isto começou logo a levantar suspeitas à esteticista quanto à minha seriedade. Quando cá a "rinhosa" praticamente se atira do sofá abaixo, não lhe restaram dúvidas! Nem podiam restar, porque a minha linda figura acabava com elas. "Notícias da beira: um voo picado quase vitimou jovem (cof, cof) que na altura não envergava calças." Exactamente, sem calças mas de botinha bicuda. Só faltava o chicote! Se por acaso calho a partir uma perna escandalizava também os homens do INEM!
Enfim, a erradicação dos pêlos é uma boa causa, vale bem um ou dois momentos embaraçosos...
Mas não contente e já recomposta estive à beira ter mais uma saída para esquecer à velocidade de TGV. Afirmações tão banais como "agora não se exponha ao sol durante uma semana" despertam os meus instintos mais despudorados e um "pois concerteza, esta semana não há perna escanchada e pachacha ao sol para ninguém!" esteve pendurado desta boca rota para fora. Era mais um episódio para... apagar.
Se não fosse a minha memória (a falta dela) como poderia eu sair à rua? A lembrança de barracas passadas e a certeza de escândalos futuros fariam de mim uma eremita.
Inevitavelmente esqueço-me também das coisas boas, mas essa deixam um bom sabor de boca. E tenho sempre a camarada folha de papel. Para me lembrar de que já fui feliz, mesmo quendo não havia merenda envolvida.
As catástrofes sociais também lá estão. Mas a expressão "virar a página" deve ter tido a sua origem num qualquer antepassado pouco discreto e desafortunado de "je"!